#001613 – 04 de Fevereiro de 2024
Severance é brilhante. Mas além disso toca-me de forma profunda, unindo o que tenho vindo a ser política e emocionalmente. Não me lembro de outra série de ficção científica assim. Ainda estou a tentar digerir o que vi e falta-me assistir aos dois últimos episódios. Mas há já duas coisas que me ocorre dizer.
A primeira é que a série não se encaixa na sensibilidade identitária que o meu lado político, a esquerda, tem vindo a deixar tornar-se mainstream. Sendo uma distopia, o universo em que as personagens se movem é totalmente desprovido de racismo ou sexismo, ou de qualquer outro tipo de descriminação baseada nas características pessoais. O que fica claro é que o grande separador político é o poder. O fosso é entre os que dominam e os que são subjugados. E por isso o que pode unir as pessoas não é essa fragmentada ideia de camadas de identidade que se partilham com algumas pessoas e não com outras. O que nos une é a vontade de autonomia política, o desejo de liberdade e respeito, de vivermos segundo as nossas próprias aspirações, sem coação.
A segunda nota é sobre algo que me toca de forma ainda mais profunda. Escrevo precisamente antes de terminar o sétimo episódio. O momento em que Irving diz, “let’s burn this place to the ground”. Irving era o mais fervoroso empregado, completamente imerso na meta-religiosidade que faz do handbook da empresa uma bíblia. Tinha sempre uma citação dos fundadores para cada ocasião e via os desvios à ideologia corporativa como heresias. E apaixonou-se. Desde que conheceu Burt, que renasceu. Durante um tempo, conciliou a paixão que nascia em si com a devoção pela distópica empresa em que trabalha. Mas o momento de ruptura dá-se quando é a própria estrutura, a lógica fundadora da Lumon que impede a consumação do amor entre Irving e Burt. Isto comove-me porque sinto que nada há de mais utópico e revolucionário que o amor entre duas pessoas. E no amor de Irving por Burt há essa faísca revolucionária, que muda Irving e o faz agir no mundo.